Codó terra dos pais de santos
Num início de noite quente e cheio de
pernilongos do inverno que quase não acontece em Codó, no Maranhão,
distante 290 quilômetros de São Luís, Benedito Dias, de 53 anos,
suspira:
— Ah, senhora, eu comando isso aqui mas
tenho medo. Levo essa vida, essa sina, essa sorte que Deus me deu, mas
não me acostumo. Nos outros a gente não teme, mas na gente…
Benedito é Mestre Bina, pai de santo na
terra da magia, onde caboclos e encantados baixam diariamente nos mais
de 300 terreiros de terecô, tambor da mata ou umbanda que se espalham
pelo município do cerrado. O número seria maior se fossem computadas as
numerosas “salas de trabalho” que funcionam em cômodos minúsculos, em
casas cujas portas só se abrem para quem já sabe das coisas ou é levado
por algum parente ou amigo.
A de Benedito é um casebre de chão de
terra quase sem móveis. Bastam cinco passos para se alcançar o galpão de
alvenaria onde Mestre Bina recebe seu encantado, Roldão de Trindade, e
seu vodum, Estevão Légua. E o que acontece quando “baixa o santo”?
— Ave-Maria! Dá um tremor, uma frieza,
um cansaço. Não sei o que acontece, só o que me contam. Eles chegam,
recebem quem vem para a consulta, conversam com as pessoas, fumam e
bebem. Falam com a voz deles. Sempre peço que não bebam muito… sinto
muita vergonha.
Benedito foi descoberto médium aos 12
anos. Conta que quando criança não dormia direito, sentia gente lhe
cutucando e fazendo cócegas até que sua mãe o levou a um pai de santo,
que confirmou a “encantoria”. O diploma de babalorixá (pai de santo) é
de 1995, pela Federação de Umbanda e Cultos Afro-Brasileiros do
Maranhão.
Incorporado o santo, Mestre Bina diz que
pode fazer tanto o bem quanto o mal. Mas ressalva que não lida com
matanças e só aceita fazer o bem. Encomenda um banho de ervas, acende
velas, reza uma prece.
Na terra da encantaria, só os pais de
santos mais poderosos e corajosos falam na dualidade de seus voduns —
palavra que, na origem africana, define e personifica força ou fenômeno
além da inteligência humana.
A matança a qual Mestre Bina se refere é
o sacrifício de animais. Fazer maldades implica o uso do sangue. Quanto
maior a dificuldade do pedido, maior a oferta. Mas pedir algum mal é
risco. Quem se aventura no pleito deve saber que o caboclo, como também é
chamada a entidade, assim como dá, tira, revida, castiga.A maioria dos
voduns de Codó é de membros de uma família de deuses ligados à entidade
Légua Boji Boá da Trindade. Légua é Legba no original africano. É o
equivalente a Exu, associado ao demônio pelo cristianismo por ser “a
única entidade negra que podia simbolizar acontraface do Deus
onipotente, ou seja, a tentação dos pecados da carne em oposição à
pureza do espírito cristão”, na explicação deYeda Pessoa de Castro,
etnolinguista, doutora em línguas africanas e professora de línguas e
culturas africanas no texto “De como Legba tornou-se interlocutor dos
Deuses e dos Homens” (Caderno Pós Ciências Sociais — São Luís, v. 1, n.
2, ago./dez. 2004).
Enquanto o Legba original tinha caráter
“capcioso e turbulento” e exibia um exagerado pênis em ereção, na
adaptação para sobreviver ao mundo cristão tornou-se um preto velho
respeitável e de cabelos brancos. E é assim que as principais entidades
se apresentam até hoje em Codó, ao som dos tambores da mata e dos
maracás.
Dançar é a chamada para que o santo
incorpore. Na quaresma, os tambores se calam e as imagens de pretos
velhos são cobertas nos altares. Os santos brancos do sincretismo
religioso reinam absolutos em praticamente todos os terreiros da cidade
de 118.038 habitantes, dos quais, ironicamente, 111.601 se declararam ao
IBGE católicos (98.439) e evangélicos (13.162), restando à umbanda e ao
candomblé apenas 650 indivíduos. Outros 3.921 moradores disseram não
ter religião.
Pois é nesta terra de cristãos que
Mestre Bita do Barão de Guaré reina absoluto no maior, mais conhecido e
mais rico terreiro que se tem notícia no Maranhão. Idade informada de 90
anos e amplamente questionada por toda Codó, Bita do Barão é, nada
mais, nada menos, do que o pai de santo da família Sarney. Conta a lenda
que os tambores soaram dia e noite, por sete dias, nos idos de 1985,
quando Tancredo Neves morreu e deixou a presidência da República ao
então vice, José Sarney.
Sendo assim, a longevidade de Sarney no
poder serve como uma espécie de carta de referência a Wilson Nonato de
Souza, nome de batismo de Bita, condecorado comendador da República
Federativa do Brasil em 1988. A honraria concedida por Sarney, estampada
em foto, tem lugar de destaque na parede da loja, vizinha ao burburinho
e aos urubus do mercado de Codó, onde Bita atende. Quarta-feira é dia
de caridade, e ele atende de graça.
Na sala de espera atrás do balcão,
desejos falam mais alto que o tempo de espera. Numa manhã de março,
Maria do Socorro Guimarães, 51 anos, foi atrás de trabalho para o
“esposo”, soldador desempregado há oito meses.
— Ele é muito acreditado. O serviço dele resolve — diz Maria.
Marcilene Silva, de 36, moradora de São
Luís, conta que procurou Bita pela primeira vez em outubro de 2012,
atrás de cura para o irmão, que estava bebendo demais.
— Vim só com o dinheiro da passagem e
uma foto dele. Sou católica, mas a gente deve percorrer todas as portas
para que Deus abra uma. Pensei: “Se ele é o melhor macumbeiro do
Maranhão, vou lá.” Paguei R$ 400 pela consulta. Meu irmão bebia dois
litros de cachaça numa noite. Agora está bem melhor, conseguiu passar
cinco dias sem beber — diz Marcilene, enquanto espera por mais uma
consulta, desta vez de graça, e pela próxima etapa do tratamento
espiritual do irmão.
Sonolentos, concentrados ou apreensivos,
todos aguardam pacientemente a vez. O curioso é que ninguém na
antessala de Bita do Barão se ponha a fuxicar as prateleiras. Também
ali, os santos brancos predominam no alto, acima das dezenas de garrafas
de banho coloridas com rótulos promissores como “Amansa corno”, “Chora
nos meus pés” e “Arranca toco”, este último indicado para depressão. Há
ainda essências como “Pega Homem”, “Corre atrás de mim” e “Faz querer
quem não me quer”. Nascido no antigo povoado de Santo Antônio dos
Pretos, Bita é do tempo em que dançar para o santo era caso de polícia.
Apanhava e ia preso. O apelido vem de “cabrito”, porque pulava muito
quando criança. Barão de Guaré é a entidade de representação branca que
dá poder ao homem que anda descalço, controla a família com autoridade
de provedor e dança para santos e encantados com roupas coloridas,
repletas de bordados.
Ele tem pelo menos 500 filhas de santo
que o seguem em busca de preparo espiritual. Sim, porque quem é médium e
não dança para o santo sofre dos males da encantaria. Orixás e
encantados são dados a estripulias.
— Aparecia tanta coisinha em sonho. Via
na parede, descendo pela rede. Coisa de desenho animado. A cor era só no
beiço. Tinha vermelho, azul — conta Raimundo Nonato da Silva, Mestre
Café, que com apenas 30 anos é um pai de santo respeitado e mensageiro
do preto velho Cipriano, de Rosalinda, de Baronesa e de Oxum Caveira,
seu vodum de “esquerda”, numa associação curiosa, onde o do bem é
reconhecido como de “direita”.
Um pai de santo recebe entidades
masculinas e femininas, uma espécie de rendição do super-homem. E quem
não se renderia aos encantos da Pombajira, dona das encruzilhadas e
padroeira das prostitutas personificada em dona Maria das Neves Silva,
55 anos. A R$ 100 a consulta, mulheres fazem fila no portão. Não estão
em busca do fugidio amado, mas de um segundo homem, amante fogoso. Ela
conta que pedir amantes tem sido algo corriqueiro em Codó.
— Quando bate no portão já sei o que é.
Meu guia é João da Mata e Maria Molambo, a Pombajira. Uno casais, caso e
descaso. Nunca passei vergonha — assegura Maria, de vestido vermelho,
na saleta onde imagens de santos quase enforcados em colares coloridos,
as guias, se emparelham com garrafas de cachaça, espumantes baratos e
perfumes.
Aos 41 anos, Sílvia Maria da Silva
comanda a Tenda São João, no topo de um morro. O terreiro é de
alvenaria. A casa onde ela mora é de taipa. Começou a dançar aos 13
anos, e sua cabocla Jacira até agora não garantiu água encanada a ela e
seus vizinhos. Sem cobrar de quem a procura, Sílvia espera por doações
que só chegam vez ou outra.
— Jacira é carrasca — define.
Nenhum lugar do mundo parece expor
tantas flores de plástico, em todas as cores e formas, do que os
terreiros de Codó. O de Bita é cercado por imagens de santos em tamanho
humano. Rosário da Conceição, 57 anos, é outra à sua espera. Acendeu uma
vela de três dias para trazer alguém de volta. Não deu. Acendeu uma de
sete. Tampouco.
— Vim com fé que ele vai resolver. Caso contrário, não faço mais nada — diz Maria, ao lado do marido.
O Bita do Barão que recebe a reportagem é
um homem carismático, gentil, de olhar profundo e disposto a explicar
um poder que, no fim das contas, é baseado na fé — imensurável,
inexplicável e individual. Discreto ao falar sobre Sarney, elogia a
inteligência do senador e lamenta que já não tenha mais tanta saúde.
Sobre o assédio e os pedidos que, dizem, são feitos aos montes por
políticos do Brasil inteiro, é direto:
— Os políticos pedem voto, pedem para vencer e para encher o bolso de dinheiro. Dinheiro! Dinheiro! Dinheiro!
Bita e Café, o mais velho e o mais novo
dos pais de santo codoenses, fazem coro ao dizer que, ultimamente, tem
mais gente pedindo o mal do que o bem. Voz suave, olhar seguro, Café faz
tocar os tambores e incorpora “seu Cipriano”.
— Chegou pedindo, estamos aqui para
fazer — diz o caboclo, entre uma baforada em seu cachimbo, um gole de
cachaça e uma cusparada.
Uma faca com restos de sangue,
semioculta numa casinha de tijolos à frente da tenda de Café, revela que
o trabalho da noite anterior foi de sacrifício. A tartaruga que um dia
antes andava pelo terreiro sumi
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